Clarice para crianças

 É uma pena que Clarice Lispector tenha escrito apenas quatro livros infantis: A Mulher que Matou os Peixes, Mistério do Coelho Pensante, A Vida Íntima de Laura e Quase de Verdade. Esses livros trazem uma sensibilidade impressionante, não deixando nada a desejar em comparação com a sua obra voltada aos adultos. São romances introspectivos, também, e por que não seriam? Clarice não subestima a inteligência das crianças.
Em A Vida Íntima de Laura, toda a narrativa se passa em torno dos “sentimentozinhos e pensamentozinhos” da galinha Laura – quer coisa mais clariceana que isso? Laura é muito burrinha, meio feia, mas tem um coração bom. Laura é vaidosa, sempre penteia as penas com o bico. Laura é muito medrosa, tem medo de morrer, mas escapa de virar ensopado porque bota muitos ovos. Já em Quase de Verdade, Ulisses, o cachorro, é o narrador. Ele late sua história (que é quase verdade) para sua dona, Clarice, que o entende e digita o texto para ele. E a história de Ulisses é sobre, adivinhem, galinhas.
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As galinhas aparecem muito em tudo que é da Clarice. Vejamos: além de nos dois livros que já falei, temos O Ovo e a Galinha, A Legião Estrangeira, Uma Galinha, Uma História de Tanto Amor, só pra ficar entre os mais óbvios. E, como os livros infantis da Clarice são muito sinceros no sentido de ter uma unidade clara com o resto da obra, existem alguns temas comuns:

  • O comer a galinha. O ato de comer a galinha que foi tão amada é recorrente, como a menina em Uma História de Tanto Amor, que come com gosto sua galinha que fora de estimação, ansiosa para que Eponina faça parte dela. Ou a Laura, que acaba não virando ensopado, mas pensa que, caso vire, gostaria de ser comida por alguém importante, como o Pelé (hahaha tá bom Laura, cada um com seus ídolos). Tipo antropofagia mas sem a parte do canibalismo.
  • A maternidade. Um tema bem importante pra Clarice, até quando não tem galinhas envolvidas. Tanto Laura quanto a galinha de Uma Galinha escapam da morte por causa de sua fertilidade, pois a maternidade é coisa para ser respeitada. Em A Legião Estrangeira, o amor que Ofélia sente pelo pintinho é maternal – e a menina o ama tão intensamente que acaba o matando. Se você conseguir sobreviver ao fluxo de consciência louco e muita vezes sem sentido direto de O Ovo e a Galinha, vai ver que é basicamente sobre mãe e filho.
  • A mulher. Esse tem muito a ver com o de cima, claro. A galinha representa a mulher: sempre galinha, nunca galo, assim como não existem protagonistas homens na obra de Clarice (alguns meninos, apenas). Daí dá pra ver a visão da Clarice sobre a mulher na sociedade.

 Se a literatura infantil tem como um de seus propósitos desenvolver a empatia na criança, libertando-a de seu estado natural que é o egocentrismo, a literatura infantil da Clarice é poderosa pois, assim como o resto da sua obra, é altamente introspectiva. Me surpreende que existam tantos livros para crianças com histórias realmente boas, criativas, que prendem a atenção – mas com personagens rasos. Os pequenos estão preparados, sim, para mais profundidade emocional. Na verdade, até anseiam por isso.